segunda-feira, 29 de março de 2010

Socorro à cultura



Nenhuma política cultural é digna desse nome se não tiver por diretrizes a busca de qualidade e a impessoalidade das escolhas. E isso só pode ser alcançado quando as decisões são transferidas para a coletividade
O impasse em torno da viabilização financeira do grupo Quadras Pessoas & Ideias de Votorantim, que anunciou o fim das atividades ao término do contrato de patrocínio com o Instituto Votorantim, é recorrente mesmo entre os melhores projetos culturais no Brasil, e não deve de forma alguma ser avaliado como um fracasso. Manter um projeto de formação artística e de produção de espetáculos de altíssimo nível durante quase dez anos, em plena aridez da paisagem cultural brasileira, é uma façanha que só engrandece os integrantes do grupo, os homens públicos e as empresas que, de alguma maneira, colaboraram para tornar possível sua existência.
Mais do que reverberar a troca de farpas entre os responsáveis pela trupe e o poder público, o importante neste momento é que os protagonistas dessa história consigam reatar o diálogo para encontrar uma forma de continuar o trabalho, se é que os mentores do grupo não têm outras realizações pessoais em seus horizontes. E que, paralelamente, o episódio possa enriquecer a discussão sobre o papel do poder público no incentivo à produção cultural. Dadas as particularidades dessa produção, cuja sustentabilidade tem sido obtida por meio de uma complexa urdidura de políticas públicas e mecanismos legais, esse tipo de reflexão é sempre fundamental.
O financiamento de atividades permanentes é particularmente desafiador. As leis de incentivo oferecem soluções importantes para a viabilização de projetos com começo, meio e fim, mas sua eficácia é menor em relação a projetos sem prazo de validade, como aqueles mantidos por orquestras e grupos de dança. Leis que preveem o financiamento direto, como a Lei de Incentivo à Cultura (Linc) de Sorocaba, praticamente inviabilizam esse tipo de patrocínio, já que a grande quantidade de projetos leva, necessariamente, a um rodízio entre os contemplados, fazendo com que os aprovados em um ano sejam automaticamente excluídos nos anos seguintes.
Mesmo quando a lei permite a renovação do patrocínio (e geralmente isso ocorre com os projetos viabilizados por meio da renúncia fiscal), as constantes reformulações das estratégias de marketing das empresas dificultam a tarefa de encontrar patrocinadores dispostos a assumir compromissos de longo prazo. Projetos reconhecidamente bons, como aquele que era mantido pelo grupo Quadra Pessoas & Ideias, são constantemente imolados às vicissitudes do marketing empresarial, uma vez que o patrocínio privado geralmente se norteia por critérios bem mais pragmáticos do que a simples avaliação de quesitos como qualidade e receptividade.
Não falta, diante de impasses como esse, quem defenda a intervenção direta do poder público, com a destinação de recursos através de convênio, por exemplo. Esta, no entanto, é uma “saída heroica” que deve ser evitada, já que abre um precedente para favorecimentos pessoais e clientelismo. Nenhuma política cultural é digna desse nome se não tiver por diretrizes a busca de qualidade e a impessoalidade das escolhas. E isso só pode ser alcançado quando as decisões são transferidas para a coletividade, por meio de conselhos verdadeiramente representativos e heterogêneos, mediante critérios tão objetivos quanto transparentes.
Mesmo a contratação de shows para os finais de semana pode e deve ser feita por meio de concursos e pré-seleções a cargo de colegiados independentes, evitando-se a política de balcão que coloca o realizador cultural na desconfortável (até ideologicamente falando) posição de precisar “vender” sua arte diretamente ao agente político. Projetos de duração indeterminada podem receber recursos de um fundo permanente, desde que se encaixem nos objetivos perseguidos e sejam reavaliados periodicamente por um conselho cultural autônomo.
O que não se pode admitir é que a política cultural de uma cidade, Estado ou país seja um instrumento de manipulação das pessoas, e que o artista receba como favor o que deveria ser seu por direito.

Notícia publicada na edição de 28/03/2010 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 3 do caderno A

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